O etanol e os desafios do mercado interno

Autor:
Antônio de Padua Rodrigues e Luciano Rodrigues
Ano de Publicação:
2008
Referência:
Artigo publicado originalmente na Revista Agroanalysis, de setembro de 2008.

Apesar das ótimas perspectivas que se desenham para o etanol no cenário internacional, o foco da indústria brasileira nos últimos
anos tem sido o mercado doméstico, alavancado principalmente pelo crescimento das vendas de veículos flex.

Introduzido no mercado em março de 2003, o veículo flex fuel ganhou rapidamente a preferência dos brasileiros e, em menos de três anos após o seu lançamento, já era responsável por mais de 80% das vendas de automóveis e comerciais leves no País. Em 2008, esse percentual já ultrapassa 90%.

Certamente o carro flex é um dos maiores patrimônios que o Brasil desenvolveu na rota dos combustíveis renováveis, pois o crescimento da frota flex aliado à competitividade do etanol em grande parte do território nacional foram responsáveis pelo renascimento do mercado de álcool combustível no País. Em março de 2003, quando surgiu o carro flex, as vendas de álcool hidratado estavam em declínio, e não totalizavam 250 milhões de litros mensais. Hoje, esse volume ultrapassa 1 bilhão de litros por mês, um aumento maior que 400% em cinco anos.

Esse crescimento da demanda foi o motor propulsor da expansão da produção de etanol, que saltou de 14,8 bilhões de litros na safra 2003/04 para mais de 22 bilhões em 2007/08, devendo atingir 27 bilhões de litros na safra 2008/09. O avanço no consumo e na produção de etanol trouxe consigo uma série de benefícios econômicos, ambientais e sociais para a sociedade brasileira. Nos últimos cinco anos foram investidos cerca de US$ 24 bilhões na expansão da capacidade produtiva e construção de novas usinas no País, gerando mais
de 150 mil empregos diretos, sem contar os efeitos indiretos proporcionados pela ativação dos mercados de fatores – fabricantes
de máquinas agrícolas, insumos e equipamentos industriais entre outros.

Sob o ponto de vista ambiental, é comprovado que o etanol reduz em até 90% as emissões de gases de efeito estufa, ajudando no combate aos efeitos nefastos do aquecimento global. Só para se ter uma ideia, se os 27 bilhões de litros que serão produzidos nesta safra fossem consumidos nos motores, teríamos evitado a emissão de gases de efeitos estufa equivalente à quantidade absorvida por uma floresta adulta de 100 milhões de árvores.

Além disso, hoje o consumidor brasileiro de gasolina também gera benefícios ambientais devido à mistura do etanol. A gasolina C usada nos veículos do País possui, atualmente, 25% de etanol anidro, que tem um preço menor que o da gasolina pura na refinaria. Em média, o preço do litro do etanol anidro em 2008 tem sido R$ 0,47 mais barato por litro, o que contribui para reduzir o preço do litro da gasolina C para o consumidor.

Se contabilizarmos a economia gerada pelo uso do álcool hidratado, mais a redução do preço da gasolina provocada pela utilização
do álcool anidro, chegaremos a uma poupança estimada em R$6,6 bilhões por ano ao consumidor brasileiro, que pode gastar esse valor com outros produtos. Cabe ressaltar ainda que o consumo de etanol tem facilitado a conquista da tão propagada auto-suficiência energética, ajudando a equilibrar a balança comercial brasileira de petróleo e derivados, que no primeiro semestre de 2008 registrou um déficit de US$ 4,7 bilhões.

Apesar do inegável avanço no mercado doméstico de etanol e dos benefícios gerados por ele, existem vários fatos que ainda exigem maior organização e coordenação dos agentes envolvidos nesse processo. São aspectos essenciais para continuarmos progredindo na busca por uma matriz energética mais diversificada e com crescente participação dos combustíveis renováveis.

O primeiro aspecto a ser avaliado refere-se à estrutura do mercado de combustíveis no País, onde fica clara a abissal diferença entre o segmento de combustíveis renováveis e o de derivados de petróleo. Enquanto a produção de etanol é realizada por mais de 350 indústrias, agregadas em cerca de 200 grupos econômicos, a produção de gasolina é caracterizada pela existência de um monopólio, em que apenas um produtor detém mais de 95% da produção. Tal confi guração permite a manutenção de preços artifi ciais para a gasolina, a despeito das variações nas cotações internacionais do petróleo.

Com efeito, ao mesmo tempo em que o produtor de etanol tem experimentado um segmento altamente competitivo pelo lado da produção, verifica-se a manutenção de subsídios cruzados entre os derivados de petróleo. Isso provoca distorções no mercado doméstico, em que o etanol hidratado concorre diretamente com a gasolina.

Outro ponto que merece ser avaliado refere-se à falta de mecanismos de proteção de preços e incentivos para o carregamento dos estoques de etanol pelos produtores. Como a grande maioria dos produtos agrícolas, o etanol é produzido em um período bem defi nido, em função da característica biológica do processo. No entanto, ele precisa ser consumido durante todo o ano, inclusive nos períodos em que não há produção. Daí a necessidade do armazenamento e estocagem privados para o consumo fora do período de safra.

Ocorre que a atual configuração do mercado de etanol não gera incentivos para que os demais agentes da cadeia de distribuição e comercialização carreguem estoques, tampouco para que novos agentes privados possam participar do processo.

Logo, o produtor de etanol se configura como o único responsável por estocar e garantir o abastecimento na entressafra. A tarefa é prejudicada pela falta de mecanismos de carregamento de estoque, o que impõe custos adicionais aos produtores, e de instrumentos de comercialização que permitam a proteção do preço na entressafra (como mercados futuros e contratos de longo prazo), os quais poderiam limitar os riscos de armazenamento do produtor. O desenvolvimento desses dois mecanismos é imprescindível para estimular a estocagem privada e, consequentemente, reduzir a sazonalidade dos preços do etanol, que se alternam nos períodos de safra e entressafra, mantendo o humor dos consumidores e empresários variando entre a euforia e o desespero.

Além dos aspectos anteriormente descritos, são inúmeros os pontos que poderiam ser analisados, entre eles a necessidade de investimento em infra-estrutura de transporte e distribuição de etanol, a falta de políticas que incentivem a pesquisa e o desenvolvimento
de novas tecnologias e usos do etanol e a criação de condições para a comercialização de subprodutos do processo industrial.

Permeando todas essas vertentes está aquele que certamente é o maior desafio do mercado interno de etanol, pois afeta, em maior ou menor grau, todos os outros aspectos. Estamos falando da necessidade de um planejamento estratégico da matriz brasileira de combustíveis, com uma diretriz clara sobre a participação do etanol nessa estrutura.

Nas últimas quatro décadas observou-se uma enorme instabilidade da matriz de combustíveis no País, provocada por políticas inconstantes e emergenciais que geraram pelo menos cinco ciclos de mudanças. No primeiro ciclo, iniciado na década de 70, observou-
se um aumento crescente do uso do diesel em detrimento do consumo de gasolina, processo que foi induzido por uma política de preços subsidiados para o diesel. A segunda onda de substituição aconteceu na década de 70 com o lançamento do Proálcool, que inicialmente incentivou o uso do álcool anidro misturado à gasolina e, após o segundo choque do petróleo, viabilizou a entrada dos veículos movidos a álcool hidratado no mercado. No final da década de 80, o governo reduziu os incentivos à produção e uso do etanol, e a gasolina recuperou rapidamente espaço no mercado automotivo, concretizando mais um processo de substituição.

O quarto ciclo de mudanças ocorreu na década de 90, com a introdução do gás natural no mercado de combustíveis automotivos, incentivada pelo excedente temporário de oferta com a importação do gás boliviano e pelos preços baixos. Finalmente, a partir de 2003 observou-se uma nova configuração do mercado, promovida pelo surgimento dos veículos flex, fato que, como descrito anteriormente, permitiu uma forte recuperação do mercado de etanol.

Ocorre que essa ciclotimia observada no mercado de combustíveis nos últimos anos gera insegurança aos consumidores e incertezas aos investidores, fazendo com que o mercado não opere da forma mais eficiente. Portanto, é essencial e urgente a definição de uma matriz energética consistente e duradoura, que crie um ambiente estável para os investimentos e atenda às expectativas dos vários agentes envolvidos direta e indiretamente no processo, sejam eles produtores, montadoras, consumidores ou governo.

Nesse sentido, vale considerar com atenção a oportunidade que se abre com a discussão da reforma tributária no Congresso Nacional, que deverá estabelecer uma nova carga tributária para os combustíveis. A expectativa é de que seja garantida a competitividade do etanol e que o novo arcabouço incorpore as externalidades positivas dos combustíveis renováveis, que o mercado, de forma autônoma, não consegue capturar.

Em resumo, enquanto o mundo procura alternativas para reduzir a dependência do petróleo e mitigar os efeitos do aquecimento global, o Brasil está em uma posição privilegiada, pois dispõe de uma fonte limpa, renovável e competitiva. Consolidar essa liderança na onda da bioenergia é um enorme desafio. Está na hora de definirmos aonde queremos chegar e, a partir de instrumentos compatíveis com uma economia de mercado, estabelecer políticas de longo prazo para atingir os objetivos traçados.